Apanhei um táxi quando saí de casa, ditando o meu destino. Para cá tornei a chamar outro. Tive azar, apanhei um decadentemente velho, e de tão absorta que estava só notei quando ele me chamou à realidade, perguntando "para onde é?", por duas vezes. Lamentei estar tão distraída, sempre tão distraída, pois ele "pisava ovos" e eu tinha posse de pouco dinheiro. Reparei em algo quando tomei em atencão o acontecimento de observação quando se apanha um táxi: o senhor mal falava, aliás não falava mesmo, a única coisa que se ouvia era as inúmeras comunicações cruzadas no altifalante, e a sua respiração pesada. Olhei para o táxi em si. Em cima do tablier estavam várias figurinhas religiosas entre elas o santinho, St. António. À frente de si estava um anjinho e uma fotografia de uma criança feliz. Sorria para nós. Desde logo me perguntei se todo aquele ambiente ruidoso fosse pela perda dessa pessoa. Olhei para o espelho retrovisor, para a cara do senhor. Era um homem velho, ostentava inúmeras madeixas de cabelo branco na totalidade do seu cabelo preto, assim como as sobrancelhas e barba também branca e já tanta por fazer. Senti-me triste, e senti em mim um sentimento íntimo em toda a preocupação constante do preço a pagar pelo contador que marcava já 3,70 euros: um sentimento de pena. Há muito que não sentia assim pena de alguém. Os seus olhos frios e vazios observavam com atenção o trânsito que já se fazia sentir nas avenidas de Lisboa a essa hora. A cara marcada pela dor e pelo tempo mostravam que já passara por momentos demasiado difíceis para uma pessoa só aguentar. Desviei o olhar e parei mesmo no cartão de serviço da Rádio Táxis, mas em vão. Pelo estado do cartão de identificação, o mesmo tinha sido usado milhares de vezes durante muitos, muitos anos. Isso de certa forma deixou-me em baixo porque simplesmente nao acredito que esse homem de tão marcado que parecia estar, gostasse de se meter num táxi ainda de madrugada e lá ficar durante todo o dia, todos os dias da semana, vendo e observando milhares de pessoas diferentes durante anos a fio, sem poder criar amizade, laços. Observando não, porque ele nem observava essas pessoas. Limitava-se a receber o pedido, como se fosse uma ordem, para dela pagar o pão nosso de cada dia. Absorta nos meus pensamentos, reparei num desastre mesmo antes do Marquês de Pombal. Umas 5 ambulancias encontravam-se já lá. Olhei para o homem esperando a sua reacção, que sendo observador do trânsito poderia ter reparado e desviado o olhar para lá com interesse, mas não. Tanto quanto me dera a perceber, o homem nem desviara o olhar para a cena, parecendo nem reparar. Normalmente a curiosidade é muita, a população adora observar acidentes, mas aquele senhor não. Estava demasiado concentrado (ou assim parecia) no seu trabalho. Quando reparei onde estava o homem fala. Ouvi com atenção. Perguntou-me se no principio da Rua do Patrocínio não houve em tempos um posto dos correios.
- Não sei, mudei-me há pouco tempo, mas acho que houve sim. - respondi supreendida pela voz grave do senhor.
- Agora é um restaurante à esquerda não é? - perguntou com uma nota de curiosidade na voz.
- É! "O Correio". - e acabo por perceber o sentido de se chamar assim. Estamos sempre a aprender.
- Também havia aqui uma praça de táxis. Havia aqui muito movimento, entravam constantemente pessoas a pedir para ir para o Chiado.
Calou-se. Reparei que deveria trabalhar como táxista desde há muito tepo, pois mostrou saudades por estar ali, talvez não fosse ali há muito tempo. O táxi parou quando disse "é aqui.". Ele parou o contador e disse "5,05 euros". Tirei uma nota de 10 euros (tinha mais dinheiro do que pensava) e dei-lhe. Recebi o troco e abri a porta. O homem olhava para a estrada. Disse-lhe "obrigada" e de seguida "um muito bom dia para si!". Nesse momento o senhor olhou para mim e vi que os seus olhos frios e vazios estavam a sorrir directamente para os meus. Fiquei feliz e antes de me deitar rezei para que a dor fosse retirada de todos os corações do mundo.
4 comments:
é incrivel... fiquei mais uma vez arrepiada com este tesxto. vou rezar pelo Senhor Taxista.. e por todos os corações mutilados pela dor. beijinhos
Este texto está excepcional... O taxista... dá vontade de o conhecer... de o acompanhar na sua futura vida. talvez ele desista dessa vida monótona e vá ser aviador para a austrália, talvez até vá para o japão trabalhar numa loja de electrodomésticos, mas dá vontade de saber se o seu ultimo movimento de boca é positivo ou negativo.
Talvez seja bom podermos comparar-nos com uma pessoa com uma vida tão singular, em todos os sentidos da palavra, como um taxista. Podemos ver o lado humano, verdadeiramente humano da comunicação entre pessoas, pessoas essas diferentes em aspectos variados e, por isso, interessantes à sua maneira. É bom sentirmo-nos tocados por algo tão simples como uma viagem de táxi, provocando em nós tudo o que salientaste e o que está inerente a esses sentimentos. Jocas Fofas...
Viva a vida.A vida é para ser vivida pois se não a vivermos ela vive por si.Viver e pensar no mesmo instante não é facil,mas quem é que gosta de disputar uma partida de futebol e não contornar um ou mais adversários?
A que saber o momento certo para fazer a assitência ou pisar e consequentemente expandir os limites convertendo as contrariadades em vantagens para nós e os que nos rodeiam.
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